CAGADA
@lord_myron
Toda regra é fruto de algum tipo de persistência natural ou artificial. Quando artificial, a persistência sintetiza a preponderância da vontade humana, que, impondo-se, diz o que é o que, quando, como, onde, quantas vezes etc. E isso é assim porque sim. Não há razão. É por ser. Prepotência em grau máximo de expressão. Só que mesmo a persistência natural, que independe de qualquer manifestação da vontade humana, é também de certo modo imposta. Quer dizer, não se sabe muita coisa nunca.
O corpo, por exemplo, funciona por dentro como uma ditadura em auge. Milimetricamente regrado, o metabolismo age independentemente de qualquer desejo. No máximo, se consegue algum tipo de alteração por meio do auxílio de estímulos externos: alguns usam drogas; outros, batem punheta ou fazem plásticas. Há os que fazem isso e muito mais. E claro, o corpo, em resposta, reage. Só que mesmo assim, e independentemente disso, tudo segue funcionando – e a vida é úmida, repleta de células e glândulas e de um não-sei-quê em vaivém infinito até o momento em que – BUM – já era; já foi; foi-se. Mas (Macabéia meio oca, sangrando, olhar vazio perguntando ao vento) e quanto ao futuro? O que teria sido amanhã se viesse a ter sido? Ora, ora... filosofias baratas assim não levam a nada. Apenas o que importa é que,
De repente – não mais que de repente (e digo isso porque foi exatamente assim, sem qualquer aviso prévio), o corpo resolveu agir de um jeito que não estava previsto. Fugindo à regra, como uma armadilha que jamais se cogita encontrar – e que, de um momento para outro, simultaneamente surge e cumpre a sua função –, a vontade de cagar explode por dentro feito o urro louco que se dá quando se quer acordar de um pesadelo que, depois, não deixa sequer vestígio na lembrança.
Mas aquele era um pesadelo vivo, real, e o urro interno era a explosão de uma persistência natural que, por fugir à regra, era um oximoro. Explico:
Naquele horário, a regra era não cagar. Fruto da insistência de ao longo de anos induzir o organismo a expelir os seus dejetos apenas pela manhã, a imposição volitiva fez uma espécie de pacto tácito com a ditadura metabólica, restando acertado que: CAGARÁS SOMENTE PELA MANHÃ. O acordo, falho entretanto, não considerou, por exemplo, as noites de insônia, ou aquelas situações em que se quer (e se pode) dormir até mais tarde, tanto que, independentemente de qualquer coisa, todos os dias, exatamente às 7:42 da manhã, abrir os olhos, admirar atônito o teto por um instante rápido e concluir a mim mesmo: 'Sim, vou cagar', tornou-se há tempos rotina.
Ora, no causo que se conta, o oximoro revelava-se pela óbvia causa de que, naquele dia, àquela altura (era pleno meio da tarde – e o sol apenas não ardia mais porque era inverno, e o vento, carregando um frio levemente áspero, trazia uma espécie de alívio), era impossível cagar. Como sempre, àquele horário, eu já tinha cagado. Como, então, cagar já tendo cagado? Como isso(?), essa exigência que o corpo, mesmo não podendo, fazia? É que, por dentro, a regência magna do organismo não estava autorizada a dar esse tipo de permissão. Menos ainda a tornar essa permissão uma ordem. Ora, às 7:42 eu tinha olhado pro teto e depois ido ao banheiro e cagado bem. Foi tudo tranquilo, natural, do modo como sempre é e deve ser.
Mas que merda! - Literalmente!
A merda impondo-se, e o ônibus lotado. O ônibus tão cheio como nunca, e a merda exigindo providências urgentes. Em Brasília, o presidente do senado, ou qualquer um deles (tanto faz – Deus, são todos tão iguais...), cagava e andava pro povo, ou já tinha feito merda suficiente naquele dia, que podia suspirar aliviado – e eu ali (no horário em que deveria estar no escritório), naquele ônibus cheio de gente (surpreendentemente lotado, já que estávamos no meio da tarde!), preso num engarrafamento sem começo nem fim (mas como?, tão fora do horário!?), não me lamentando mais apenas pelo fato de que, apesar do sol, estava frio – – – – –
Só que, de repente – não mais que de repente, o céu ficou escuro, o vento docemente gelado deu lugar a um abafamento indizível e a chuva começou a cair tão intensa, mas tão intensa, que, em pouco tempo, o ônibus era uma ilha, cercado de água por todos os lados. E a merda, não aguentando mais, parecia prestes a me tornar indigno. E, de repente – não mais que de repente,
Você sabe,(ou não???)
Tudo pode acontecer sempre...
Mas depois? Depois, tudo bem!
Ou você acha que terei o prazer de ser repugnante e escatolgicamente detalhista?