quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

DOROTHY

À inspiração de Ben.

(Dorothy estava com uma gripe daquelas tipo salto agulha quinze, e tinha medo do próprio ar – escondida em máscaras. Uma para cada dia do mês, as máscaras tinham a pureza do gelo, enquanto a coca-cola sorria para ela dizendo: “Estás vendo! Você não entende nada!”
O que de fato Dorothy queria era o que precisava: um sorriso não pode ser só um deslize – e ela sabia que uma aposta era como um trem. Sua solução, no fim, era só um apelo. Mas a eficiência da coca-cola era fatal, fornecendo o exemplo de práticas quase espirituais).
Ela (Dorothy) queria tanto uma estrada amarela com setas e números... Mas só uma carona perto do banheiro de um vagão de segunda de um trem foi o que conseguiu.
Estava gripada, mas tinha máscaras que em muito breve seriam como nada.
À certa altura, foi correr.
O trem estava não muito iluminado, mas, antes de ver um galo cantando, um bandido sorria com dentes de gato na janelinha. Sua convicção foi óbvia: ele precisava de um ajudante.
Só que, nessa etapa, qualquer ovelha podia ser verme. Afoita, sentindo que seus olhos tinham ficado azuis, Dorothy lembrou da coca-cola.
“Se não conheço esse homem ainda, posso fumar!”, pensou.
A neblina estava se tornando cada vez mais comunicativa. Dorothy não estava cansada, mas tinha um plano: queria ajudar – por qualquer razão sabia que direitos e garantias impunham respeito e dava medo. Fez, então, já de volta ao trem, a armadilha:
“Como posso saber que você não está mentido?”, perguntou para o bandido, segurando um cigarro.
“Sou direto – e dou ordens!”, disse o homem, olhando 6:59 no relógio.
Dorothy ficou abobada com aquele jeito de agüentar dele e com o modo ladeado como segurava fósforos úmidos. Ele, claro, não foi eficiente.
“Só depois do casamento...”, foi a desculpa amarelada em forma de fala que ele achou.
Dorothy espirrou.
“Desculpe – disse ela – a culpa é minha. Minha maldita máscara de hoje está com defeito... Mas, tudo bem! Sua chance não é menor...”
Ele ficou atento e quis tomar uma coca-cola que tinha acabado.
Na mão direita ele tinha um furo onde colocou o olho dentro para descobrir se Dorothy realmente estava ali. Qual não foi sua surpresa ao perceber uma fadinha ruiva no ombro dela.
“Eu tenho abutres...”, disse ele.
Dorothy riu com uma sinceridade má:
“Eu, não respeito palavras”, disse.
O homem sentiu sua balança desequilibrada e, mesmo não acreditando em fadas, sabia que seu furo não era um imbecil. Mas queria sentir alguma confirmação, como quando um chapéu cai. Sabia que se tirasse o casaco ficaria mais confortável, só que teve medo dos olhos azuis da mulher gripada.
“E mais essa: a fada dela é ruiva!”, pensou, cutucando um dente.
Dorothy não se sentiu em nenhum instante como um trapo velho ou como uma procura. Sabia que ali adiante tinha uma ponte, e que aquele trem sonolento podia parar bem em cima dela.
Parecendo um cego, o homem tirou um palito de fósforo seco detrás da orelha. Aí Dorothy ficou preocupada, e pensou em jornais. Ele pegou o palito e riscou na unha.
“Eu não vi nada!”, disse ela, tentando acalmar sua úlcera.
“Por que não arrota?”, perguntou o bandido, fazendo uma cara de ovo.
“Bom... – começou ela, dando uma tragada lenta – eu faço a minha parte... Aliás, tento fazer. Mas a coca-cola acabou! – fez uma pausa – Foi uma desistência tão dura para quem está num trem... – fez outra pausa – Sabe, eu tenho pena dela como de uma música triste que eu cantava de joelhos.
O homem gostava de chaminés, mesmo quando estava com calor longe do vento, mas não, não podia deixar que Dorothy não fosse correr mais um pouco:
“Por que não vais lá, antes da ponte, comprar coca-cola e cigarros?”, perguntou com uma voz de frango.
Mas Dorothy, sem querer, apitou forte, e não soube disfarçar seu arrepio. Sim, o homem sabia da ponte, e ela, crespa de susto, foi correndo se esconder embaixo do trem.
...
Ele viu o sol nascendo por detrás de uma montanha como um machado na testa. Lembrou que Dorothy era milagrosa, mas sabia que seus olhos não eram de verdade. Seu sangue ficou um pouco maligno, pois não permitia a si mesmo carregar pesadas sacolas invisíveis, nem mesmo por consideração àquele velho albino que uma vez conheceu na praia e que lhe deu um dente de ouro.
Sabia que Dorothy tinha uma causa e um nome. Pensou em fazer a barba antes de procurá-la, mas teve medo que alguma planta nascesse ou que aquele maldito galo levantasse outra vez a cabeça como um bom garoto. Já sabia, pois não era bobo, que queria uma certeza como quando se tem um filho.
Ia procurar Dorothy, sem nem mesmo sabê-la Dorothy, e sem sequer desconfiar que, àquela hora, depois de ter conseguido manter um certo tipo de comunicação no subterrâneo do trem, Dorothy assistia, colhendo flores para o almoço, a batismos.
Antes de sua busca, porém, o homem pensou que agora já podia jogar seu casaco fora. Subiu no trem movendo bem os braços e tomando o tolo cuidado de tentar enganar o sol. Se ele tivesse uma corda, as coisas não seriam mais fáceis, pois teria que carregá-la.
Em cima do trem, sequer cogitou a possibilidade de ser passarinho. Estava ocupado, os olhos atentos como uma bússola. Claro que ele não sabia se Dorothy tinha ou não ido comprar coca-cola e cigarros. Mulheres sabem segredos. Mas ele, vamos e venhamos, mesmo quando dizia “Ai, ai, eu sei que dói!”, não era bobo. E era másculo como um homem armado.
Tomou cuidado, e deitou, com os braços abertos, numa das pontas do trem. O vento na cara não dava destemor; mas ele tinha uma essência organicamente corajosa. E não teve – não, não teve – nenhum batimento inédito quando o trem estacou sobre a ponte num brusco que quase fez desgraça.
Ser um bandido não é macio. É meio atear fogo num quarteirão inteiro, numa cidade inteira, ou colocar gente num forno, e pensar em poemas. E tentar ser um bandido bonzinho não alivia nada não. Procurar Dorothy não alterava contagem alguma. Se queria uma coisa leve, deveria ter dado atenção a preferências diferentes daquelas que sempre lhe foram saudáveis.
Não ter mais escolha é um motivo pra um dia qualquer descobrir um intenso. Quando se confecciona algo, isso pode se tornar um hábito. Em cima do trem em cima da ponte em cima do riozinho distante lá embaixo que ia pra todos os lados que os olhos naquele momento não enxergavam, o bandido mais uma vez só confirmou não poder mais perder tempo com esperas, pois Dorothy não tinha voltado – e ela tinha gripe, coitadinha.
E não demorou muito para ir buscar o rio, porque estava faceiro e sabia que quando chegasse em casa poderia encontrar um prêmio colorido para distrair os olhos. Mas, fosse qual fosse o seu tapar de buracos, Dorothy não tinha voltado.
Passou a sofrer um pouco, porque o rio ainda estava no chão, e ele como que procurando um chinelo que não se encontra. Se pelo menos houvesse um barulho de 600 toneladas, ele teria um conforto como o de mãos bem limpinhas, limpinhas, risonhas – orgulhosas por tanta vulnerabilidade, isenta de germes patogênicos.
Seus dedos pareciam cenouras. Nunca notara em suas mãos nada além de um furo. Aliás, mesmo sendo simétrico, desde sempre era como se ele tivesse apenas aquela mão furada – como se tivesse tão-só uma única mão quase transparente.
Mesmo idiota com a descoberta de seus próprios dedos novos, não teve como evitar aquele furo tão... tão... tão casual.
Arrancou a mão, como se tivesse feito isso ontem à noite, e enfatizou a um de seus olhos uma legítima visão de ordem como aquela dentro de uma célula. Sua felicidade aumentava cada vez mais, ainda que Dorothy não tivesse seguido o seu ditado. Mas, na realidade, nem se ele fosse um inseto minúsculo ele poderia ter uma suculenta certeza.
“Dorothy, por que não tens cheiro?”, perguntou ele alto, segurando a mão furada com a outra, num aceno para uma coisa meio furta-cor no céu branco.
E, se o trem queria ver a família, seria bem mais simples ser arrancado dos trilhos por uma brisa.
O bandido jogou fora a mão furada e mostrou seus dentes de gato pro ar.
Apareceu de dentro dele, vindo do meio, uma gargalhada esférica que, rolando contra a gravidade, antes de sair, asfixiou um pouco. Aí, não teve jeito: pulava, dançava, balançava o trem porque estava convicto como uma liga metálica.
Procurou no bolso um desejo, mas o que tinha era um pedaço de jornal: Virgínia Woolf.
O chão líquido então foi se aproximando calmo, em ato ejaculatório até o último instante contido. Era bom tudo aquilo tanto como inverter o próprio corpo. Só que aquele prazer era quase agressivo, porque ele não estava indo passear. Mas ele, sim, sentia até o conforto de uma bactéria bem instalada ou de dentes sem dor.
Assim, indo-se em busca de Dorothy, depois da mão, o bandido tocou o rio geladinho geladinho e foi nadando ao centro, sem lembrar que se fosse um peixe não correria riscos. Não chegou a se cansar, pois ainda tinha prazer, mas desistiu, porque queria um muito mais longe do que tão longe.
No céu do rio, uma fila de nus aguardava cada um a sua vez com o velho albino desdentado. Mesmo sendo um bandido, teve surpresa pelo velho.
Quase colocando os pezinhos miúdos no gelo da água, já livre de todas as suas máscaras, Dorothy segurava flores.
O homem tentou voar e, quando olhou bem para cara dela, viu seus olhos cor de ônix.
“Não tenho mais gripe!”, ela disse como se dissesse um ai alegre.
“Joguei minha mão fora... e, podemos ser felizes?”, perguntou.
Sem responder, sorriu frágil:
“As rosas estão frescas, têm veneno doce e disseram que sentem saudade de sons guturais expressos com calma”.
Ele riu.
Naquele dia não chovia, e eles almoçaram tranqüilos, assistindo a um balé de borboletas vermelhas.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

REFLEXÃO 001

Se houve um tempo em que a literatura desempenhava um papel relevante no sentido de retratar (e, algumas vezes, até de criticar) realidades específicas de determinadas épocas, bem como no que concerne ao quesito entretenimento daqueles poucos abastados que outrora tinham acesso à leitura, vivemos agora um tempo tão incerto quanto híbrido, em que, por um lado, uma pseudo-arte, industrial e pasteurizada, monopoliza a atenção de uma maioria com cérebros de ervilha (sem menosprezo às ervilhas, claro), enquanto que, por outro, uma suposta arte alternativa, orgulhosa por seu vanguardismo tardio, se vangloria por imitar o passado, afogada em seu próprio umbigo – sorrindo, como se segurasse um troféu.
Se sua vida vale um livro, pense em sua morte – e não se iluda: elogios significam pouco. É claro que ninguém mais é bobo – ou prepotente – ao ponto de acreditar em bom e ruim. Convenções, convicções, preferências e conceitos, logicamente, sempre existem. Vide Augusto dos Anjos: ridicularizado em seu tempo e, atualmente, bem mais conhecido que muitos de seus contemporâneos. Mas isso não basta: há o que chamam cânone – e, hoje em dia, a literatura parece viva e morta ao mesmo tempo: de um lado, por exemplo, uma efusiva produção literária na web (que significa exatamente o quê?); de outro, o mesmo dilema oco de sempre: terá Capitu traído Bentinho?
Onde Ginsberg diz “mulheres, parem de ter filhos!”, eu digo, por mais machista que possa parecer, “mulheres, parem de ter filhos!”, e, ainda, “acadêmicos, parem de estudar mortos!”. É que se os estudos literários, tão metodológicos, sisudos e sérios, nem ao menos estão em sintonia com seu tempo, e se não se cansam de direcionar com tanto afinco seu foco de estudo ao passado e não ao porvir, que ao menos tenham a incumbência de não repetir obviedades.
Mas não adianta: no churrasco para poucos convidados ilustres, só entro disfarçado de mosca.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A lágrima corre lavando a alma de algum modo que não entendo;
A alma tenta fugir de alguma coisa que não conhece;
A fuga, algumas vezes confusa, parece alívio que não existe;
De concreta, então, só resta a lágrima que, em suicídio, corre para o incerto, que é apenas um.
Mas nada muda, pois a lágrima, muda, é apenas egoísmo que se perde em seu próprio abismo.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

NADA

Hoje eu ia escrever sobre um deputado que não sei o nome que quer acabar com essa palhaçada de foro privilegiado para parlamentares. Mas, aí, fiquei pensando: por que comentar algo que deveria ser óbvio?

Depois pensei em escrever sobre música. Quer dizer: refletir um pouco a respeito de tudo isso que se escuta, daquilo que chamam dom, do que chamam indústria cultural - e tive vontade de sumir do mapa num trem pras estrelas.

Melhor não escrever nada.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008


quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

13 ANOS - ESPANCADO, MORTO

O que dizer quando a polícia espanca e mata um menino de treze anos?
Tinha treze anos – e morreu.
Morte matada daquelas sem explicação. Raiva, vontade de matar ou o quê? Não, nada disso. Soube-se depois: treinamento. Exato. Foi a polícia, aprendendo a matar lá no nordeste. E se aprender matando faz parte de um treino, isso não é nada que deva, por qualquer razão que seja, surpreender, afinal, aqui nos trópicos, é tudo tão comum e normal, que mesmo a exuberância da própria natureza de um país tão lindo (e miserável) se sente até constrangida. E é assim, é normal. Matam, se for o caso ficam um pouquinho assistindo televisão e bebendo uma cervejinha a título de prisão, e depois tudo continua, tudo volta ao normal como se absolutamente nada tivesse acontecido.
E o que aconteceu? Ah, um menino morreu, foi só. Tinha treze anos e queria ser médico, artista, bombeiro ou bandido? Tanto faz. Precisava viver para decidir. Ter o direito de estar vivo às vezes acho que é favor que prestam. Eles (e não só os porcos como esses que assassinaram esse garoto que nem sei o nome) decidem. Estamos condenados: há bandidos por todos os lados e, sim, como é bom ser cidadão algemado, refém de tudo isso... Porque não, nada pode ser feito? É isso? É exatamente isso de que nada se altera por aqui nunca? Ficar buscando culpados, apenas, não traz solução. Só que impunidade, tampouco, resolve qualquer coisa.
Mas prepotência é palavra que não dá conta de caracterizar o que ocorreu. Chamar aquilo de prepotência é pouco. Mas, mesmo assim, “prepotência” serve para expressar o que houve e tantas vezes há, sempre, em qualquer canto, que a gente nem sabe se tem mais medo ou raiva. E quem é bandido no meio disso tudo? Bom, se você já foi abordado por algum desses que chamam policiais, tem uma vaga idéia... É assim: você é o culpado, e deve confessar! Agora! Enquanto não for provado o contrário, a culpa é sua, e você tem que ficar quieto, caso contrário... não, não... isso era antigamente... Hoje em dia não é mais assim. As coisas mudaram: agora eles julgam, condenam e matam – enquanto o judiciário se faz de louco, tira férias ou rouba.
E, sim, a polícia também mata. Mata matando, como se faz com mosca. Mata um aqui, outro ali, mais um acolá. Coragem e sorte é o que se precisa pra ficar vivo, e, nessas horas, o que diz Deus?
Uma vez me botaram num camburão. É que eu tinha roubado um carro, sabe... E o fato era tão fato, que argumento nenhum tinha cabimento. Na realidade, besteira minha querer argumentar com acéfalos. E eles queriam porque queriam saber onde estava o tal carro que supostamente havia sido roubado por mim. Aliás, para eles, não havia suposição alguma: eu era o bandido, o criminoso que, instantes antes, tinha roubado o tal Kadett. O que eu estava fazendo quando eles chegaram com o “mão na cabeça, mão na cabeça!”? Corria pela rua, no auge dos meus dezoito aninhos, num belo começo de uma tarde limpa... Donde concluí que: não, não nunca mais posso correr na rua. A minha sorte foi que acharam o tal carro roubado. Aí eles descobriram tudo – e ficou tudo por isso mesmo. Só as vizinhas fofoqueiras é que ficaram felizes.
Só que lá no nordeste a polícia matou um menino. Bom, e que novidade há nisso. Certamente você, que não acredita que sapo vira príncipe, e que nem tampouco acha que o trenó do papai Noel é puxado por renas aladas, sabe muito bem que a polícia mata mesmo. Pois é, eles matam. E pra que serve uma polícia assim? Mesmo que tivessem matado um bandido! Não, não altera em nada. Aliás, ao que eu saiba, bandidos é que matam... Sabe aquele som antigo dos Titãs, lá da época do “Cabeça Dinossauro”? Pois é, tão eternamente atual que tenho vontade de vomitar. Também pudera: o mundo anda pra traz. O ser humano, se visse um alienígena, daria um tiro, ao invés de esconder a cara no fundo da terra. E, nessa panacéia toda, o povo brasileiro é também culpado sim! E muito. É o tal do futebol pra cá, o tal do carnaval pra lá e, não bastando tanta besteirada, agora, o Big Bosta Brasil – tantas coisas que geram uma mobilização aguda e oca. Ou vai me dizer que você tem mais orgulho do que eu de ser brasileiro?
Mas para que tudo o que se comenta aqui tenha alguma validade útil, pouco importa quando o que ocorreu, ocorreu. O que importa, sim, é punir os responsáveis diretos e indiretos por essa barbárie escrota. Quem viver, verá? Veremos...
Fatos são como pedras:
Tinha treze anos – e foi morto.